ruído de fundo


2023-2024
+Laura Valor Priego










Ruído de Fundo é pura potência. É quase um zumbido e uma maldição. Em maio de 1993, cinco figuras de arte rupestre foram extraídas do sítio arqueológico de Benirrama Abric I, localizado em Vall de Gallinera (Alicante, Espanha). As peças, que foram declaradas Patrimônio da Humanidade, datam do período neolítico, entre 7.000 e 4.000 a.C. Mas um dia, ah esse dia, a montanha violou a regra: abriu seus poros e as pinturas fugiram, saqueadas e mutiladas por uma serra radial. Amanheceu e nada. Amanheceu e, na pedra, dois buracos, quase perfeitos. E o crime? Uma aura, cruel e sem nome. Até hoje, a localização das peças permanece um mistério. A ferida cresce, como a maré; cresce e se expande, até se tornar um verdadeiro ato de profanação.

A violência é fundacional. Não existe sociedade sem conflito, porque não existe sociedade sem poder e diferença. E assim, beirando a insônia, este projeto começa: “Em que mansão está a arte ancestral?”. O passado, arrancado da natureza, exibe um conflito de classe, mas também de memória e vozes, de espaços – que se abrem e se fecham, como uma montanha ou uma mansão – e, é claro, de temporalidades. O roubo no Vall de Gallinera introduz uma dissonância entre o tempo neolítico – um tempo pacífico, quase suspenso – e o tempo do imediatismo: um tempo linear e ascendente, atravessado pela mercantilização da cultura, a fetichização do passado e a aceleração galopante do capitalismo contemporâneo. O crime mordeu a montanha, mas não o fez de forma trivial ou anedótica, mas com uma serra, uma máquina que gira e nunca para de girar, que se repete ad nauseam, como um monumento à técnica e à destruição. O comum se dilui no indivíduo e na força extrativista do capitalismo, que, nesse caso, é ruinosamente lançado no mercado internacional ilegal de arte. O acontecimento, o fato histórico que funda e dá sentido à história, é sempre o roubo e não a arte. É a ausência – a materialização de uma falta – e não o passado: a memória gravitando sobre o presente, cheia de vertigem e comunidade.

O roubo de uma obra de arte. A arte como uma denúncia de roubo. De todos os roubos. Ruído de Fundo busca extrapolar esse acontecimento para revelar sua natureza sistêmica. É, afinal, uma tentativa de trazer à tona os mecanismos sociais que possibilitam que esse tipo de roubo continue acontecendo, especialmente considerando que, de acordo com a Interpol, o tráfico de obras de arte e antiguidades é o quarto crime mais lucrativo do mundo. Nesse sistema, habitam todos os tipos de narrativas, da imprensa ao cotidiano, passando pelo boato, pelo turismo e pela ecologia, sem esquecer o poder do Estado, cheio de armadilhas e a imperiosidade surda da burocracia. Como em qualquer história de detetive, a exposição segue a ordem da descoberta e, portanto, da investigação. Nesse caso, uma investigação artística – e não criminal, arqueológica ou jornalística – conduzida por Francele Cocco e Laura Valor Priego. Suas estratégias são as da arte contemporânea, que explode os arquivos, escuta os símbolos e prefere as experiências, os materiais e os discursos situados à historiografia ou aos discursos da burocracia oficial. Assim como a Associação Espanhola de História Pública, ligada à Universidade Autônoma de Madri, esse projeto busca abrir o passado e desnaturalizar o presente, a fim de contribuir para torná-lo mais plural, mais inclusivo e mais democrático. E é disso que se trata Ruido de Fondo: perturbar o mapa emocional da montanha para que essa serra e essa paisagem continuem soando, mas sem dar as costas a outras vozes, até que se escute seu eco na cidade. Em todas as cidades.

Emiliano Nicolás Abad García, Associação Espanhola de História Pública






¿en qué mansión está?

Intervenção site-specific, bandeira de algodão, 
tinta acrílica e antotipia, 8,20 x 1,40 m
Fotografias digitais, impressão giclée color 
em papel de algodão, aço, 1,18 x 1,38 m
2024








Essa bandeira foi instalada no abrigo da montanha abrindo uma questão como reflexão crítica. Utilizando duas técnicas: a primeira parte da frase (“En qué mansión está?”) foi pintada com tinta acrílica, enquanto a segunda parte (“el arte ancestral") foi produzida com antotipia, uma técnica fotográfica não poluente, feita com elementos naturais que aproveitam as propriedades fotossensíveis das folhas e pétalas das plantas da própria região do Vall de Gallinera. Com o passar dos dias, sob exposição à luz, a segunda parte da frase vai desaparecendo lentamente até não poder mais ser vista, materializando o desaparecimento no trabalho ao vivo como um eco da memória das figuras desaparecidas e deixando ressoar uma questão mais ampla sobre otros aprisionamentos do comum.







arxiu-compost

Impressão digital sobre papel de desenho satinado
96 peças, 18 x 21 x 6 cm cada
2024







Série de 96 peças dobradas de tal forma que, de frente, se vêem quadrados de tamanho semelhante aos deixados na montanha. O conteúdo das impressões são os rastros de diferentes arquivos, ícones encontrados na papelada da polícia, mapas, documentos, relatórios, relatos orais, imagens, diagramas, pegadas de tudo o que se moveu institucional e burocraticamente após a desapropriação, somados a nova documentação gerada pelas artistas. É uma maneira de mostrar sem revelar, de contar pedaços em vez de toda a história, de explodir qualquer tentativa de uma narrativa oficial e de representar a passagem do tempo. Em todos os tempos, a documentação é sempre apresentada como parcial, fora do centro, nas margens, em tempos inacessíveis, destacando questões burocráticas, produção de arquivos e lógicas de acumulação e progresso as quais é impossível recompor.







ruído de fundo

Video monocanal, arquivo digital, 16:9, 
color, som estéreo, 10’34”
2024







Peça audiovisual criada em colaboração com o músico Thomas Rohrer a partir de imagens e sons capturados no Vall de Gallinera, musicados e misturados com diferentes instrumentos e sonoridades. A peça tenta abordar o som da serra radial por meio de outras paisagens sonoras, como o chacoalhar de uma cerca ao vento, a água caindo de um cano, o afiar de diferentes metais ou carros em alta velocidade na estrada. Busca simbolicamente o efeito da serra radial por meio de outras materialidades sonoras como uma metáfora para o ruído que acompanha o mal-estar nas sociedades contemporâneas. Dessa forma, como um eco de fora, o som dessa instalação toma conta de todo o espaço da exposição como um ruído de fundo.






sem título

Escultura de duas peças feita com biomateriais, calcita, pó de calcário, pó de hematita e aço sobre montanha de pó de calcário
Dimensões variáveis
2024









Duas peças escultóricas em resina bioplástica, fundidas a partir de um molde dos buracos deixados na montanha usando fotogrametria. As esculturas, medindo 20 x 20 cm, seguem o tamanho original dos quadrados, marcados pelo roubo, e são compostas de várias camadas, recriando o vazio deixado para trás e reproduzindo-o topograficamente. A ausência evoca uma presença composta de várias camadas de leitura, lembrando um documento, encadernado com aço, sequestrado. A poeira alude alegoricamente ao que aconteceu depois que a pedra foi cortada com uma serra radial em 1993. De acordo com o testemunho dos arqueólogos que descobriram o roubo, as pinturas restantes estavam cobertas com um pó branco que as colocava em perigo e as invisibilizava. As esculturas estão localizadas no centro do espaço da exposição e cada uma delas é colocada sobre pequenas pilhas de pó. O pó de calcário branco e a hematita vermelha compõem os biomateriais, os mesmos minerais encontrados na montanha.






1expolio

Fotografia Polaroid, color, 50 x 70 cm.
2024







Na época da intervenção em Benirrama, fizemos um registro fotográfico e audiovisual do Abric como material de referência. Entre as imagens capturadas, uma Polaroid, cujo filme havia expirado, gerou uma imagem enigmática na qual são projetadas a montanha (por meio do produto químico concentrado), as cercas de proteção e, ao fundo, a pegada quadrada do roubo. Uma imagem-síntese do passado e do presente que concentra aleatoriamente a experiência do evento no local.






pontos cegos

Escanografias impressas em tinta pigmentada 
sobre papel vegetal e papel de poliéster, 
digital transfer film, aço e pedra de calcário
2024



      


Relembrando e atualizando o gesto que os arqueólogos costumavam fazer no passado para registrar as pinturas rupestres por meio de decalques, nos aproximamos da montanha para registrar a pegada com um scanner portátil de documentos. A natureza desse procedimento produz erros, em que a imagem às vezes aparece em detalhes, às vezes desaparece queimada pelo excesso de luz e às vezes mal pode ser registrada devido à falta de luz. Esse tipo de registro gera uma imagem claramente artificial, com interferência de glitch – uma espécie de ruído inseparável da forma –, emulando assim essa clara violação da paisagem e do patrimônio público.